Anais: Pele da Arte / Organizadores Lia Braga Vieira, Miguel de Santa Brígida Júnior, Ana Flávia Mendes Sapucahy – Belém: PPGARTES/ICA/UFPA. p. 778-786.
Autoras:
Katiuscia de Sá, hellenkatiuscia@gmail.com. Mestranda acadêmica em Artes pelo
Programa de Pós-Graduação em Artes pela Universidade Federal do Pará; é formada
em Jornalismo pela UFPA. Especialista em Educação para Jovens e
Adultos/EJA-modalidade Artes; atriz profissional; realizadora amadora do
audiovisual paraense.
Wlad Lima, wladlima@ufpa.br. Possui
Pós-doutorado em Estudos Culturais pela Universidade de Aveiro, Portugal.
Doutora em Artes Cênicas pela UFBA. Atua com professora-pesquisadora na Escola
de Teatro e Dança e no Programa de Pós-graduação em Artes ICA \ UFPA.
Atualmente, administra o Poética Criatura – Laboratório de Teatro de Porão,
situado no centro histórico de Belém. É atriz, diretora e cenógrafa na cidade
de Belém do Pará.
Eixo: “1.
Poéticas e Processos de Atuação em Artes”.
Pesquisa em
andamento em Artes.
Subárea: Teatro.
RESUMO
Mitoanálise da montagem teatral intitulada
“Os 12 Trabalhos de Hércules”, feita pelo grupo paraense In Bust – teatro com bonecos. O artigo aponta alguns mitemas
detectados ao longo da adaptação feita pelos atores que utilizam bonecos em
cena. A análise procura apontar o mito diretivo que caracteriza a história, e também
traz à luz como os integrantes do grupo experimentaram recursos cênicos para recontar
o mito de Hércules nos dias atuais, focando no público infantil. O procedimento
metodológico parte da visão psicanalítica junguiana (uma das bases teóricas
adotadas por Gilbert Durand na construção de suas teorias críticas), para então
prosseguirmos com a mitoanálise, a fim de comentar os mitemas recorrentes
encontrados no mito grego original e que se transferem para a atual adaptação
teatral do grupo In Bust, examinado-os
brevemente dentro de seu contexto sociocultural e interpretado sob à luz do
mesmo. O objetivo desta análise é compreender como se dá a recorrência dos
mitos diretivos nas sociedades contemporâneas, de acordo com o pensamento de
Gilbert Duran.
Palavras-chave: mitoanálise;
grupo In Bust; teatro com bonecos;
mitologia grega;
ABSTRACT
Mitoanalysis of the stage production
entitled "The 12 Labors of Hercules" by In Bust Group - puppet
theater, from Belém/Pará/Brazil. The article points out some mythemes detected
along the adjustment made by the actors using puppets on stage. The analysis
seeks to highlight the directive myth that characterizes the history, and also
brings to light the way how the group members experienced scenic resources to
retell the myth of Hercules today, focusing on children. The metodology begins
with the Jungian psychoanalytic view (one of the theoretical bases adopted by
Gilbert Durand to build his critical theories), and then proceeds with the myth
analisys in order to cut the recurrent mythemes found in the original Greek
myth that move to the current theatrical adaptation of In Bust group, inquiring
them briefly in their sociocultural context and interpreted in the light of it.
The objective of this analysis is to understand how is the recurrence of the
directive myths in contemporary societies, according to the thought of Gilbert
Duran.
Keywords: mitoanalysis;
In Bust Group; theater with puppets; Greek mythology;
Escrito por Peisândro
de Rodes, cantado num poema épico, por volta de 600 A.C, traduzido para diversos
idiomas, incontáveis versões e adaptações, Os
Doze Trabalhos foram atribuídos ao semideus Hércules, em romano (Héracles,
em grego) por vingança da deusa Hera, esposa de Zeus (deus supremo do Olimpo),
pelo fato dele tê-la traído com a mortal Alcmena, cujo fruto deste
relacionamento fora Hércules.
Cada reprodução trás a
especificidade da linguagem dando à história um tom diferenciado. Partindo
desse axioma, em meados de 1970, o antropólogo francês Gilbert Durand desenvolveu
um esquema de estudos dos arquétipos e arcabouços do imaginário coletivo encontrados
nos mitos de diversas culturas, que ele denominou como “mitocrítica” e “mitoanálise”.
Ambas têm correlação
direta com estudos psicológicos baseados na teoria do inconsciente coletivo
desenvolvida pelo suíço C. G. Jung (1975 – 1961), servindo ela como apoio para
o que Durand atribui ao poder imagético e imaginário das narrativas literárias.
Para efeito didático apresentaremos
objetivamente como se aplica a mitocrítica. Ela atua originalmente no âmbito da
critica literária, porém, pode ser utilizada para analisar qualquer compreensão
onde o caráter mítico da obra esteja embutido, nesse caso, ela então necessita
de um contexto cultural para poder ser efetuada, como explica Neves (2001):
A
mitocrítica é um método de crítica de texto literário, de estilo de um conjunto
textual de uma época ou de um determinado autor que põe a descoberto um núcleo
mítico, uma narrativa fundamentadora e o(s) mito(s) que atua por detrás dela. Ela
desvela um nível de compreensão maior que se alinha com os grandes mitos
clássicos. (NEVES[1],
2001).
Essas “pistas” ao longo
do discurso são detectadas através de três fatores que trazem à tona o sentido
do mito dominante, são eles: “mitemas”, “mito diretivo” e “texto cultural”.
Primeiro elencamos em
uma expressão artística e/ou narrativa mitológica, o que Durand denominou de
“metáforas obsessivas”, que são a repetição de aparições de ideias ao longo de
um discurso – sejam de forma visual, narrativa e/ou dissimulada – esses são os
“mitemas” (as menores partículas identitárias do mito diretivo; ou seja, são as
pistas espalhadas ao longo do contexto, que detectadas pelo receptor, refletem
a ideia central e dominante do mito diretivo. Os mitemas condensa a mesma
verdade do todo presente no mito).
O “mito diretivo” vai
se revelando quando fazemos um exame minucioso entre a história da narrativa e as
ocorrências combinatórias das situações fictícias com o contexto social atual
de onde a história está sendo inspirada ou inserida, isto interfere diretamente
em sua leitura e (re)significação simbólica por parte do receptor, sendo que
esta associação dá vida ao “texto cultural”.
A mitocrítica trata-se
de um método de análise literária embasada em estudos da Psicanálise
enfatizando o contexto cultural, já a mitoanálise está mais para uma exame
cientifico dos mitos em um contexto histórico maior: o social abraçando o
conteúdo antropológico e histórico que o envolve
Já a palavra mito etimologicamente deriva do grego antigo “mithòs”,
referente às narrativas simbólico-imagéticas, relacionadas a uma determinada
cultura. O mito está intrinsecamente atrelado ao rito e por isso, normalmente a
compreensão dessas narrativas está ligada primordialmente à ação das
personagens fictícias, sendo que essas ações ou feitos são utilizadas para explicar
o insondável: normalmente coisas que fogem à compreensão ou intervenção humana.
De acordo com Junino de Souza Brandão (1986):
[...] o mito não pode ser lógico: ao invés, é ilógico e irracional.
Abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações.
Decifrar o mito é, pois, decifrar-se. E como afirma Roland Barthes, o mito não
pode, consequentemente, “ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é um modo
de significação, uma forma”. [...] Uma verdade que esconde outra verdade. [...]
É que poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito,
buscando apenas a ilusão que o mesmo contém. Muitos veem no mito tão somente os
significantes, isto é, a parte concreta do signo. É mister ir além das
aparências e buscar-lhes os significados, quer dizer, a parte abstrata, o
sentido profundo. (BRANDÃO, 1986, p. 36-37).
Dito isso, este artigo se
propõe realizar uma mitoanálise da peça Os
Doze Trabalhos de Hércules, do grupo teatral paraense In Bust – teatro com Bonecos. O procedimento metodológico partirá
da visão psicanalítica junguiana (uma das bases teóricas adotadas por Gilbert
Durand), prosseguirmos com a mitoanálise, a fim de localizar os mitemas
recorrentes do mito grego original nesta adaptação teatral do grupo In Bust, examinado-os brevemente dentro
de seu contexto sociocultural e interpretado à luz do mesmo.
Os
doze Trabalhos foram uma série de armadilhas para
Hércules. Como estratégia, Hera ordenou que o filho bastardo de Zeus ficasse
sob as ordens do rei de Micenas, Euristeu (neto do semideus Perseu, e primo de
Hércules).
Porém, como um semideus,
Hércules tinha uma força extraordinária, e obteve sucesso em seus doze
trabalhos: 1) Matar o Leão da Nemeia e tirar sua pele para entregar ao rei
Euristeu; 2) Matar a Hidra de Lerna; 3) Capturar a Corsa de Cerineia; 4) Capturar
vivo o Javali de Erimanto; 5) Limpar os currais de três mil bois, do rei
Aúgias, que há trinta anos não haviam sido limpos; 6) Matar monstros que viviam
no lago Erimanto; 7) Levar vivo o Touro Minos, de Creta até o rei Euristeu; 8) Castigar
o rei da Trácia, Diómedes (filho do deus Ares), devido ele governar seus
súditos com crueldade e tirania; 9) Vencer as Amazonas e dominar a rainha delas
– Hipólita, pra poder se apossar do cinturão mágico dela; 10) Matar o gigante
Gerião e tomar-lhe a criação de gado; 11) Colher os pomos de Outro do Jardim
das Hespérides; 12) Trazer o Cão Cérbero que pertencia ao deus Hades, guardião
do Mundo dos Mortos;
Na visão da psicanálise
junguiana, que se utiliza do discurso verbal para tecer a compreensão sobre
imagens formadas pelo ID[2],
as passagens desse mito podem ser associadas ao simbolismo imagético, comparando-as
aos arquétipos universais onde habitam os fantasmas interiores inerentes a cada
ser humano, como explica a Psicóloga Rafaella Santos Silveira:
[...] o conceito de inconsciente para Jung pode
ser dividido em dois, o pessoal e o coletivo. Independente de qual seja, Jung
concebia que a linguagem do inconsciente seria por imagens, símbolos e
fantasias, por isso seria difícil decifrá-lo, por ser um tipo de linguagem
diferente (imagens) da utilizada pela consciência (palavras) [...] As
manifestações do inconsciente coletivo aparecem como motivos universais, ou
seja, se repetem independente da época ou cultura. Inclusive foi observando
isso que Jung chegou à conclusão da existência desse inconsciente. (site http://www.apoiopsicologico.psc.br/).
Sob a ótica junguiana, cada
tarefa de Hércules simbolizava um estágio de sua psique a ser desenvolvida e
desafiada a superar os obstáculos seguintes, como é o exemplo de matar o Leão
da Nemeia e tirar sua pele para entregar ao rei Euristeu. Segundo a análise
junguiana, o leão pode ser visto como a construção da couraça emocional que
todo ser humano é forçado a forjar em algum momento da vida.
Partindo desse axioma,
podemos fazer correlação ao jogo dos arquétipos universais às três crianças (representadas
pelos atores Adriana Cruz, Aníbal Pacha e Paulo Ricardo Nascimento) a partir do
prólogo da encenação teatral do mito.
Se analisarmos a ação
simbólica do jogo cênico que essas três personagens fazem, ao longo da peça,
observamos claramente a indicação das couraças emocionais sendo tecidas e
modificadas a todo o momento. Vejamos: no inicio do jogo entre os dois
“meninos” da peça, detectamos o comportamento patriarcal de ambos quando a
“menina” tenta participar da brincadeira. Sendo ela ignorada e repelida pelos
garotos, ela então retorna e apresenta uma nova brincadeira onde todos possam
participar, estando ela, porém, (disfarçadamente) sempre no comando de tudo.
Temos aí revelada a couraça da “mulher maravilha” – a super-mulher: bonita e
inteligente, cujo pensamento e astucia devem ser maiores do que o orbe
masculino, para que ela sobreviva frente aos preconceitos sociais à sua
condição feminina. Podemos fazer correlação a este mitema às próprias ações de Hera
ao longo do mito, vistas no espetáculo, onde a força mental e inventividade da deusa
surgem como um ato de dominação, ao forjar mirabolantes planos contra Hércules.
De acordo com Herbert Marcuse,
em seu livro “Eros e Civilização – uma
interpretação filosófica do Pensamento de Freud”, a humanidade engendrou
para si própria um sistema de dominação onde a energia proveniente da libido
sexual se reverte para ações realizadoras do trabalho, entretanto a realização
do trabalho individual não serve somente para o sustento do próprio individuo.
Ele serve para manter uma engrenagem maior, que aliena o próprio individuo
através de seu trabalho, como explica o autor:
Para a
esmagadora maioria da população, a extensão e o modo de satisfação são
determinados pelo seu próprio trabalho; mas é um trabalho para uma engrenagem
que ele não controla, que funciona como um poder independente a que os
indivíduos têm de submeter-se se querem viver [...] Os homens não vivem suas
próprias vidas, mas desempenham tão só funções estabelecidas. Enquanto
trabalham, não satisfazem suas próprias necessidades e faculdades, mas
trabalham em alienação. (MARCUSE, 197, p. 58).
Aprofundando o conceito
da palavra “trabalho”, etimológica origina-se do latim “tripalium” – instrumento utilizado na lavoura, mas que também nomeava
um aparelho de tortura de origem romana constituído por três estacas afiadas,
usado na Europa em tempos remotos. Contudo, antes mesmo de ser utilizada para
designar esta ferramenta de tortura, tripalium,
com o sentido de “trabalhar” significava a perda da liberdade, pois na Roma
antiga, apenas os escravos trabalhavam.
Composta de “tri”
(três) e “palus” (paus). Argumenta-se que desta combinação originou-se também a
palavra tripaliare (ou trepaliare), que designava alguém que
fora acometido ao tripalium,
lembrando que desta raiz romana teriam surgido as demais palavras do gênero,
nas diversas línguas de origem latina: trabalho
– em português; travail – em
Francês; trebajo – em catalão; trabajo – em espanhol; travaglio – em italiano (também
associado ao ato da mulher dar a luz); sendo que labor (inglês) e lavoro
(italiano) são resquícios de sua etimologia antiga.
A partir do latim, o
termo tripalium migrou para o francês
arcaico travailler – que também tinha
a conotação de “sentir dor” ou “sofrer”. Com o passar do tempo a palavra ganhou
força como sendo a mesma coisa que: “executar uma tarefa difícil, árdua” ou
“realizar uma atividade exaustiva”. Entretanto, a partir do século XIV o termo
passou ao sentido genérico que atualmente temos da palavra trabalho: emprego de
forças (mentais, físicas e/ou habilidades) humanas para realizar e concluir uma
determinada tarefa.
Ao longo dos séculos perpetua-se
a negatividade do termo “trabalho”, através da perspectiva bíblica, pela
passagem da Gênesis, quando Deus expulsa Adão e Eva do Paraíso, castigando-os pelo
fato de alimentarem-se do fruto da “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”. Assim,
Deus profere a Adão: “Com o suor de teu rosto e pelo fruto de teu trabalho, tu
comerás o teu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque tu
és pó, e ao pó voltará” (Genesis 3:19).
Mas,
como as personagens do grupo In Bust são
“crianças”, as mesmas desconhecem esse principio do trabalho. Elas se divertem
através do jogo cênico, tornando-se um ponto antagônico entre o mito diretivo e
seu conteúdo enquanto peça representada. Atrelado a essa característica, as
personagens infantis ainda subvertem a lei das três unidades do teatro (Poética de Aristóteles: ação, tempo e
lugar), abrindo espaço ao universo da própria ação mitológica, pois quando o
mito é ritualizado pelos atores interpretando “crianças” que brincam de
representar o mito de Hércules, temos aí o rito sendo consagrado sob duas
formas: enquanto representação mítica, mantendo o conteúdo simbólico (na ação e
tempo – em alguns momentos, cronológicos; em outros, subjetivos), e enquanto
espaço geográfico, aderindo formas e diálogos locais (que nos revelam o lugar:
no caso a cidade de Belém do Pará, Brasil). Como veremos a seguir.
Quando as “crianças”
arquitetam os meios para contar a história de Hércules, elas interferem no mito
diretivo no sentido de abrir arestas para que o contexto social local perpasse
todo o conteúdo do mito original. Como é no caso do linguajar regional,
bastante coloquial usado o tempo todo por elas; o acréscimo na fala corriqueira
para explicar algum elemento ou passagem do mito original. Este aspecto situa o
espectador no “aqui agora” da encenação. Entretanto, essa liberdade poética
utilizada na dramaturgia pelos atores é encarada de modo bastante natural, de
acordo com o ator Aníbal Pacha, em entrevista concedida em Junho de 2015, para
este artigo:
[...]
são três “crianças” brincando desse mito. [...] porque o universo já tinha se
instalado à partir das nossas escolhas estéticas, dramatúrgicas, e [...] dos
elementos que a gente colocou, levaram com que isso fosse uma brincadeira de
criança [...] e cada um tem uma personalidade dentro dessa estrutura. No inicio
essa peça não era assim. [...] Depois a gente colocou a narração como a
brincadeira dessas [...] e a gente acha que tem a questão do clownesco também nos três. Então essa
construção vem a partir disso. (Entrevista com Aníbal Pacha, em jun. 2015).
Partindo desta fala,
podemos inferir ainda que “o fazer dos atores” (preparação e ensaio da peça) se
mistura com o mito de Hércules, quando eles próprios se reconhecem enquanto
“crianças” que brincam do mito em questão dentro do jogo cênico onde precisam
superar obstáculos da encenação para adequar as cenas ao conteúdo adaptado da
história original, pois a partir do momento em que revivem os passos e a
ambientação do mito diretivo, eles dão força ao rito do mesmo, trazendo à tona
a memória filogenética das sociedades latino e indo-ocidentais, da qual a
Grécia Antiga foi o berço. Se tanto para Gilbert Durant, quanto para Carl Jung
as manifestações dos arquétipos coletivos dos mitos se repetem independente da
época ou cultura, vemos isso ocorrer claramente como uma microestrutura, dentro
do universo de encenação dos atores que representam as “crianças” que “brincam”
do mito de Hércules.
Invocando Artaud e seu
pensamento-força de que o Teatro pode ser utilizado como uma experiência de
transformação, ou resgate da energia vital dos seres e da própria vida, podemos
inferir que, quando os atores do In Bust
iniciam seu jogo cênico, eles automaticamente trazem para a cena o próprio
ritual e a “força mágica” comum ao universo de todos os mitos – a transformação
do Logos, a reunião da simbologia com
a ação concreta do mesmo, pois:
[...]
para se atingir o mito, que se expressa por símbolos, é preciso fazer uma equivalência, uma “com-jugação”, uma “re-união”,
porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo
representa sempre mais do que seu significado evidente e imediato [...] Através
do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças e
energias que jorram nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma
transcendência vivida. [...] em resumo: o rito é a práxis do mito. É o mito em
ação. O mito rememora, o rito comemora. (BRANDÃO, 1986,
p. 38-39).
A transformação do Logos
acontece em cena todas as vezes que as “crianças” da peça retornam ao seu
espaço habitual (que no espetáculo faz referencia à realidade delas); quando há
algumas quebras na narrativa do mito em cena (momentos em que as personagens
narradoras se desligam da brincadeira de contar a história, para discutirem o “rumo”
e as “regras” do jogo); e também quando os elementos e recursos utilizados
pelos atores (objetos de cena/cenografia) para representar simbolicamente dados
referentes ao mito assumem-se enquanto embalagens recicladas (resignificação
imagética). Há também a realidade do mito que extrapola o espaço-tempo da peça,
dos atores, e do publico, quando as crianças narradoras se apropriam dos
lugares “mágicos” que representam a diegese do mito. É interessante observar
como os próprios atores construíram esse espaço-tempo diegético através da
escolha e utilização dos recursos cenográficos:
[...]
no cenário nós mantemos a ideia dessa coisa de resíduos sólidos. A gente pegou
aquelas telas de construção [...] como se fossem quatro colunas gregas
separando três mundos: o palácio; e no extremo tem o inferno; no centro a gente
elegeu que seria uma área neutra do espetáculo. Não é qualquer um que pode sair
por esses portais [...] não tem boneco no palácio. Sempre sai o ator [...] o
rei “Euristeu” sempre sai por ali; no meio sai qualquer bicho, [...] e os
bonecos sempre estão em cima, que a gente chama de “Olimpo”. E embaixo é o
inferno. (Entrevista com Aníbal Pacha, em jun. 2015).
O tempo é apresentado
dinâmicamente – tempo das crianças: subjetivo; tempo dos deuses: mítico/histórico;
tempo cronológico da peça (onde as personagens interagem com a plateia).
Entretanto, por tratar-se de um ritual encenado no teatro, as personagens
ganham conotações extras: o duplo papel de quem narra e de quem é atingido pela
ação narrada e encenada (o herói e as demais personagens do mito em ação). Podemos
elencar esses aspectos à própria jornada de Hércules (que executa as ações e se
beneficia delas para seu crescimento psicológico e político). Isso acontece
devido ao aspecto transcendental do mito quando efetivamente levado à ação, como
explica Junino Brandão (1986):
O rito, [...] transforma a palavra em verbo, sem o que ela é apenas lenda, “legenda”, o que deve ser lido e
não mais proferido. À ideia de reiteração, prende-se a ideia de tempo. [...] o rito abole o tempo
profano e recupera o tempo sagrado do mito. [...] É precisamente essa
reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a segurança
de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar seu
mundo. (BRANDÃO, 1986, p. 40).
Essa particularidade observada na narrativa dramatúrgica que
o grupo In Bust efetivou para a
adaptação do mito de Hércules também revela o mito diretivo a partir do momento
das escolhas e procedimentos para a montagem. Ou seja, a Arte tem esse poder
imaginativo para comunicar o incomunicável, pois é pura invenção.
[1] Disponível em: http://www.cei.unir.br/artigo23.html#nota1
[2] Termo
usado na psicanálise para designar “o local” da mente que armazena a pulsão
responsável pelos instintos, impulsos
mais orgânicos e desejos do inconsciente humano, reprimidos no sujeito.
Referências:
ARAÚJO, Alberto Filipe; TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Gilbert Durand e a pedagogia do imaginário. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, n. 4, p. 7-13, out./dez. 2009. Disponível em: < http://wp.ufpel.edu.br/gepiem/files/2008/09/Texto-Alberto-e-Cec%C3%ADlia.pdf > Acessado em: 10/07/2015.
BRANDÃO, Junino de Souza. Mitologia Grega, vol. 1. Petrópolis: Vozes, 1986.
BULFINCH, Thomas, 1796-1867 – O livro de ouro da mitologia: a idade da fábula: histórias de deuses e heróis / Thomas Bulfinch – 9ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
DURAND, Gilbert, O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Trad.: Reneé Eve Levié – 3ª edição. Rio de Janeiro: DIEFEL, 2004.
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MARTINS, J. Cândido. Campos do Imaginário de Gilbert Durand. Revista Eletrônica Labirinto/. Disponível em: < http://www.cei.unir.br/res1.html >. Acessado em: 10/07/2015.
NEVES, Josélia. Reflexões sobre a Ciência do Imaginário e as contribuições de Durand: um olhar iniciante. Revista Eletrônica Labirinto/ 2001. Disponível em: < http://www.cei.unir.br/artigo23.html#nota1 >. Acessado em: 10/07/2015.
_________________, Definição de Mito. Wikipédia – a enciclopédia livre. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Mito >. Acessado em: 10/07/2015.
SILVEIRA, Rafaella Santos. Principais Conceitos da Psicologia Analítica de Jung. Site Centro Apoio Psicológico. Disponível em: < http://www.apoiopsicologico.psc.br/principais-conceitos-psicologia-analitica-jung/ > Acessado em: 28/07/2015.
_________________, Etimologia do Trabalho. Disponível em: < www.ufgs.br/e-psico/subjetivacao/etim_trab.html >. Acessado em: 10/09/2015.