Analisando
os motivos velados que o sistema organizacional brasileiro preconiza para que
tais modelos educacionais tornem-se legítimos, tomamos como base os estudos de
Michel Foucault em seu livro “Microfísica do Poder” (1979), onde o autor
discorre sobre esses mecanismos de coerção em massa e como eles permeiam a
sociedade: “Verdade e Poder”; “Os intelectuais e o poder”; “Poder-corpo”;
“Genealogia e poder”; “Soberania e disciplina”, dentre outros mecanismos de
dominação que afetam também as instituições de ensino que atuam na formação dos
professores, como também no cotidiano para seu exercício de docência,
engessando docentes e discentes e a
própria gestão escolar numa espécie de conivência mútua.
Observa-se
que o endurecimento na formação dos professores nas universidades surge como
reflexo das disputas de controle ideológico do Poder exercido pelas quatro
esferas coercitivas, que influenciam nas decisões comportamentais da sociedade
funcionando em conjunto (Igreja, Política, Economia e Mídia), os comportamentos
provenientes dessas esferas de poder são assimilados e multiplicados pela sociedade.
Assim o interesse de controlar a massa de manobra é feita em concordância com o
que a população em geral compreende como normatividade ou algo “natural” do
domínio de convívio social, afinal:
“[...]
estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o
discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte,
efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados
a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função
dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder”
(FOUCAULT, 1979, p. 180)
Como
‘discursos verdadeiros’, compreendemos as entrelinhas das ações governamentais
apoiadas pelas demais esferas de controle. Isso é muito visível quando
analisamos o conteúdo das disciplinas vigentes nas escolas da rede publica. Há
sempre a predominância de setores econômicos, culturais e ideológicos das
regiões e estados brasileiros que se destacam como influencias políticas no
País. Contudo, o que se mostra mais perverso são as barreiras ideológicas
erguidas contra o progresso em prol da implantação e adaptação dos conteúdos
para o ensino integrado nas escolas publicas brasileiras. Isso é um reflexo dos
mecanismos de poder sendo postos em ação, segundo Foucault:
“[...] quando penso na mecânica
do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder
encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus
gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana” (FOUCAULT, 1979, p. 131)
Se
fizermos uma volta no tempo, veremos que a educação se fez à divisão do
trabalho desde o Brasil colônia nas Corporações de Ofícios, onde o acesso ao
ensino era preferencialmente voltado para o homem branco e livre, não para os
escravos. Daí se desenhou uma modalidade de ensino nos Liceus de Artes e Ofícios para
atender as sociedades civis. Os Liceus recebiam subsídios públicos para formar mão-de-obra
visando atender ao Império. De certo modo, a educação profissional nasce nesse
momento. Junto com o advento da Proclamação da República em 1889. Veio o
movimento de industrialização, deu-se a instalação de Escolas de Aprendizes e Artífices por
todo o país e o ensino profissionalizante se consolidou!
Desde
o seu surgimento, até os dias atuais, o ensino profissionalizante passou por diversas
mudanças, mas nada que o referende como uma educação completa; prova disso é o
Sistema ‘S’, composto pelas seguintes instituições: Senai, Senac, Senat, Senar,
Sebrae, Sescoop. O sistema ‘S’ se propõe a atender a demanda do mercado de
trabalho, referentes ao setor produtivo, da indústria, do comércio,
agricultura, transporte e cooperativas. Além de qualificar
e formar profissionais, o sistema também tem como missão promover o bem-estar
social.
Historicamente, a elaboração e o engessamento do currículo também
são reflexos da política de substituição
de importação e da expansão comercial no Brasil, que ainda repercutem nos dias
atuais. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Educação promove uma reformulação
das diretrizes para a educacional profissional, adotando novas praticas e
tentativas de articular os saberes autonomamente (saber-fazer, saber-ser e
saber-conviver), sem perder de vista as
situações concretas e inerentes ao trabalho e associadas a noções de uma
estética da identidade, estética da
sensibilidade, ética da identidade, política de igualdade..., em resumo um ‘Ethos
profissional’. Um “saber operativo, dinâmico e flexível, capaz de guiar
desempenhos num mundo do trabalho em constante mutação e permanente
desenvolvimento” (Conselho Nacional de Educação).
Quando
falamos sobre a implantação de uma proposta político-pedagógica em uma
instituição de ensino, nos referimos também a posturas sociais inseridas nesse
contexto. Se uma gestão escolar administrativa opta adotar uma determinada
prática pedagógica a outra, intrinsecamente ela dita quais caminhos trilhar no
momento em que os educadores legitimam o conhecimento que será repassado aos
seus educandos. Ora, se nesses conteúdos houver discriminação geográfica ou de
outra ordem econômico-social, já irá se propagar um rastro do que Foucault
chama de mecanismo de disciplina:
“Um
direito de soberania e um mecanismo de disciplina: é dentro destes limites que
se dá o exercício do poder. Esses limites são, porém, tão heterogêneos quanto
irredutíveis. Nas sociedades modernas, os poderes se exercem através e a partir
do próprio jogo da heterogeneidade, as disciplinas têm o seu discurso. Elas são
criadoras de aparelhos de saber e de múltiplos domínios de conhecimento. São
extraordinariamente inventivas ao nível dos aparelhos que produzem saber e
conhecimento. As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da
disciplina é alheio ao da lei e da soberania, mas o da regra “natural”, quer
dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei, mas o da
normatização; referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira
alguma o edifício do direito, mas o domínio das ciências humanas; a sua
jurisprudência será a de um saber clinico” (FOUCAULT, 1979, p. 189).
Estes
mecanismos de disciplina são repassados aos contextos de ensino e aprendizado aos
futuros professores que ingressam nas faculdades de Pedagogia e afins. Desse
modo, o aperfeiçoamento dos docentes que irão formar novos profissionais da
educação precisa não apenas de uma reforma curricular e/ou de novas técnicas de
ensino, ou mesmo de teorias pedagógicas, mas é fundamental promover uma reforma
interna do individuo, fazendo que haja a compreensão de que ele (e todos
profissionais de todas as áreas da sociedade) agem em conjunto para validar ou
desvalidar o que acatamos como ‘normatização’ social do conhecimento.
Sandra
Corazza em seu livro “O que quer um currículo?” (2001) fala também das relações
implicadas na confecção de um currículo e suas intenções. “É a partir da
formação do currículo que formulamos os mundos, e a ele atribuímos sentido; ele
é um dispositivo saber-poder-verdade na linguagem Foucaultiana”, ela esclarece
ainda mais essa relação ao dizer:
[...] que palavras um currículo utiliza para
nomear as “coisas”, “fatos”, “realidade”, “sujeitos” são produtos de seu
sistema de significação, ou de significações, que disputa com outros sistemas.
Que um currículo, como linguagem, é uma prática social, discursiva e
não-discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas,
prescrições morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser do
sujeito” (CORAZZA, 2001, p.10).
Desse
modo, entram e saem políticos na esfera publica de quatro a quatro anos através
do processo de eleição partidária, escolhido pelo voto popular; porem a ilusão
de poder dado à população continua firme e forte diante da ignorância da grande
massa de manobra, quando a mesma desconhece que não é o poder da normatização
em si que é a grande vilã, e sim os mecanismos utilizados pelos detentores do
poder, que inibem o progresso espiritual e intelectual da sociedade.
Essas
práticas e discursos de poder refletem em todos os campos da educação, ao que reflete
às Artes em especial,
a questão é ainda mais complexa. Temos professores jovens saindo das
universidades, porém, poucos escapam do fatalismo da formação tradicional e
replicam conteúdos e estratégias de ensinos defasados; exemplos próximos de nós
corroboram tal constatação.
Não
obstante, podemos estender nosso olhar para este momento de formação, aonde o
foco é nos formar para atender jovens e adultos na modalidade EJA. Por conta de
uma demanda da própria Especialização, fizemos uma oficina de arte na Escola
Duque de Caxias, (bairro da Marambaia, Belém/PA), já aplicando outros saberes e orientações diferenciadas.
Percebemos que por maior que fosse nosso empenho em apresentar conteúdos novos,
didática participativa, avaliações coletivas, ferramentas tecnológicas; a turma
rendia pouco, além da baixa frequência e evasão - comuns a esta modalidade de
ensino. Foi possível detectar, nos poucos encontros que tivemos com estas
turmas, que para além da escola, há uma vida difícil, uma família por vezes desestruturada,
dificuldade financeira, etc., uma complexidade de variáveis que não podem ser
ignoradas e aí está nossa missão enquanto educadores: fazer do
ensino-aprendizagem uma estratégia de autonomia, emancipação e transformação na
vida dessas pessoas.
Não
sejamos ingênuos em colocar as dificuldades da escola e dos professores
como único motivo de poucos avanços na
educação, por trás desse sistema há uma conjuntura social que não favorece o
sucesso da escola pública. Falta ampliar as políticas sociais para corrigir
essa desigualdade que é histórica. Para além disso, temos uma outra
constituição na formação da sociedade em geral, outros paradigmas, diversas
realidades, várias subjetivações; que às vezes contribuem fortemente para uma miséria
simbólica. Mais uma vez o educador precisa reafirmar seu compromisso na
formação desses jovens, resistir em cada sala de aula como se estivesse numa trincheira,
para depois tomar todo o território da escola e da Educação como uma batalha
possível de ser vencida. Enfim, sua
missão como educador estará completa, pois neste momento o ciclo educacional se
reiniciará e novos desafios de formação estarão postos novamente em prova, e
nós enquanto educadores estaremos fortalecidos. Saber sobre esse sistema de
poder do qual Foucault nos alerta, compreender seus mecanismos em sociedade é
primordial para que o novo educador não seja deformado e vencido pelo sistema.
*Artigo escrito em Junho/2014.
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Referências:
Conselho
Nacional de Educação (Brasil). (1999) op.
Cit.
FOUCAULT,
Michel. Microfísica do Poder,
(organização e tradução: Roberto Machado), Rio de Janeiro: Graal 25ª ed., 1979.
CORAZZA,
Sandra, O que quer um currículo? Pesquisas
pós-críticas em Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.