sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Educação e Currículo: o engessamento da formação dos professores nas universidades





Analisando os motivos velados que o sistema organizacional brasileiro preconiza para que tais modelos educacionais tornem-se legítimos, tomamos como base os estudos de Michel Foucault em seu livro “Microfísica do Poder” (1979), onde o autor discorre sobre esses mecanismos de coerção em massa e como eles permeiam a sociedade: “Verdade e Poder”; “Os intelectuais e o poder”; “Poder-corpo”; “Genealogia e poder”; “Soberania e disciplina”, dentre outros mecanismos de dominação que afetam também as instituições de ensino que atuam na formação dos professores, como também no cotidiano para seu exercício de docência, engessando  docentes e discentes e a própria gestão escolar numa espécie de conivência mútua.
Observa-se que o endurecimento na formação dos professores nas universidades surge como reflexo das disputas de controle ideológico do Poder exercido pelas quatro esferas coercitivas, que influenciam nas decisões comportamentais da sociedade funcionando em conjunto (Igreja, Política, Economia e Mídia), os comportamentos provenientes dessas esferas de poder são assimilados e multiplicados pela sociedade. Assim o interesse de controlar a massa de manobra é feita em concordância com o que a população em geral compreende como normatividade ou algo “natural” do domínio de convívio social, afinal:

“[...] estamos submetidos à verdade também no sentido em que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 180)

Como ‘discursos verdadeiros’, compreendemos as entrelinhas das ações governamentais apoiadas pelas demais esferas de controle. Isso é muito visível quando analisamos o conteúdo das disciplinas vigentes nas escolas da rede publica. Há sempre a predominância de setores econômicos, culturais e ideológicos das regiões e estados brasileiros que se destacam como influencias políticas no País. Contudo, o que se mostra mais perverso são as barreiras ideológicas erguidas contra o progresso em prol da implantação e adaptação dos conteúdos para o ensino integrado nas escolas publicas brasileiras. Isso é um reflexo dos mecanismos de poder sendo postos em ação, segundo Foucault:

“[...] quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana” (FOUCAULT, 1979, p. 131)
                                                                                                                             
Se fizermos uma volta no tempo, veremos que a educação se fez à divisão do trabalho desde o Brasil colônia nas Corporações de Ofícios, onde o acesso ao ensino era preferencialmente voltado para o homem branco e livre, não para os escravos. Daí se desenhou uma modalidade de ensino nos Liceus de Artes e Ofícios para atender as sociedades civis. Os Liceus recebiam subsídios públicos para formar mão-de-obra visando atender ao Império. De certo modo, a educação profissional nasce nesse momento. Junto com o advento da Proclamação da República em 1889. Veio o movimento de industrialização, deu-se a instalação de Escolas de Aprendizes e Artífices por todo o país e o ensino profissionalizante se consolidou!
Desde o seu surgimento, até os dias atuais, o ensino profissionalizante passou por diversas mudanças, mas nada que o referende como uma educação completa; prova disso é o Sistema ‘S’, composto pelas seguintes instituições: Senai, Senac, Senat, Senar, Sebrae, Sescoop. O sistema ‘S’ se propõe a atender a demanda do mercado de trabalho, referentes ao setor produtivo, da indústria, do comércio, agricultura, transporte e cooperativas. Além de qualificar e formar profissionais, o sistema também tem como missão promover o bem-estar social.
Historicamente, a elaboração e o engessamento do currículo também são reflexos da política de substituição de importação e da expansão comercial no Brasil, que ainda repercutem nos dias atuais. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Educação promove uma reformulação das diretrizes para a educacional profissional, adotando novas praticas e tentativas de articular os saberes autonomamente (saber-fazer, saber-ser e saber-conviver), sem perder de vista  as situações concretas e inerentes ao trabalho e associadas a noções de uma estética da identidade,  estética da sensibilidade, ética da identidade, política de igualdade..., em resumo um ‘Ethos profissional’. Um “saber operativo, dinâmico e flexível, capaz de guiar desempenhos num mundo do trabalho em constante mutação e permanente desenvolvimento” (Conselho Nacional de Educação).
Quando falamos sobre a implantação de uma proposta político-pedagógica em uma instituição de ensino, nos referimos também a posturas sociais inseridas nesse contexto. Se uma gestão escolar administrativa opta adotar uma determinada prática pedagógica a outra, intrinsecamente ela dita quais caminhos trilhar no momento em que os educadores legitimam o conhecimento que será repassado aos seus educandos. Ora, se nesses conteúdos houver discriminação geográfica ou de outra ordem econômico-social, já irá se propagar um rastro do que Foucault chama de mecanismo de disciplina:

“Um direito de soberania e um mecanismo de disciplina: é dentro destes limites que se dá o exercício do poder. Esses limites são, porém, tão heterogêneos quanto irredutíveis. Nas sociedades modernas, os poderes se exercem através e a partir do próprio jogo da heterogeneidade, as disciplinas têm o seu discurso. Elas são criadoras de aparelhos de saber e de múltiplos domínios de conhecimento. São extraordinariamente inventivas ao nível dos aparelhos que produzem saber e conhecimento. As disciplinas são portadoras de um discurso  que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da soberania, mas o da regra “natural”, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei, mas o da normatização; referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito, mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clinico” (FOUCAULT, 1979, p. 189).

Estes mecanismos de disciplina são repassados aos contextos de ensino e aprendizado aos futuros professores que ingressam nas faculdades de Pedagogia e afins. Desse modo, o aperfeiçoamento dos docentes que irão formar novos profissionais da educação precisa não apenas de uma reforma curricular e/ou de novas técnicas de ensino, ou mesmo de teorias pedagógicas, mas é fundamental promover uma reforma interna do individuo, fazendo que haja a compreensão de que ele (e todos profissionais de todas as áreas da sociedade) agem em conjunto para validar ou desvalidar o que acatamos como ‘normatização’ social do conhecimento.
Sandra Corazza em seu livro “O que quer um currículo?” (2001) fala também das relações implicadas na confecção de um currículo e suas intenções. “É a partir da formação do currículo que formulamos os mundos, e a ele atribuímos sentido; ele é um dispositivo saber-poder-verdade na linguagem Foucaultiana”, ela esclarece ainda mais essa relação ao dizer:

 [...] que palavras um currículo utiliza para nomear as “coisas”, “fatos”, “realidade”, “sujeitos” são produtos de seu sistema de significação, ou de significações, que disputa com outros sistemas. Que um currículo, como linguagem, é uma prática social, discursiva e não-discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, prescrições morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser do sujeito” (CORAZZA, 2001, p.10).

Desse modo, entram e saem políticos na esfera publica de quatro a quatro anos através do processo de eleição partidária, escolhido pelo voto popular; porem a ilusão de poder dado à população continua firme e forte diante da ignorância da grande massa de manobra, quando a mesma desconhece que não é o poder da normatização em si que é a grande vilã, e sim os mecanismos utilizados pelos detentores do poder, que inibem o progresso espiritual e intelectual da sociedade.
Essas práticas e discursos de poder refletem em todos os campos da educação, ao que reflete às Artes em especial, a questão é ainda mais complexa. Temos professores jovens saindo das universidades, porém, poucos escapam do fatalismo da formação tradicional e replicam conteúdos e estratégias de ensinos defasados; exemplos próximos de nós corroboram tal constatação.
            Não obstante, podemos estender nosso olhar para este momento de formação, aonde o foco é nos formar para atender jovens e adultos na modalidade EJA. Por conta de uma demanda da própria Especialização, fizemos uma oficina de arte na Escola Duque de Caxias, (bairro da Marambaia, Belém/PA),  já aplicando outros saberes e orientações diferenciadas. Percebemos que por maior que fosse nosso empenho em apresentar conteúdos novos, didática participativa, avaliações coletivas, ferramentas tecnológicas; a turma rendia pouco, além da baixa frequência e evasão - comuns a esta modalidade de ensino. Foi possível detectar, nos poucos encontros que tivemos com estas turmas, que para além da escola, há uma vida difícil, uma família por vezes desestruturada, dificuldade financeira, etc., uma complexidade de variáveis que não podem ser ignoradas e aí está nossa missão enquanto educadores: fazer do ensino-aprendizagem uma estratégia de autonomia, emancipação e transformação na vida dessas pessoas.
Não sejamos ingênuos em colocar as dificuldades da escola e dos professores como  único motivo de poucos avanços na educação, por trás desse sistema há uma conjuntura social que não favorece o sucesso da escola pública. Falta ampliar as políticas sociais para corrigir essa desigualdade que é histórica. Para além disso, temos uma outra constituição na formação da sociedade em geral, outros paradigmas, diversas realidades, várias subjetivações; que às vezes contribuem fortemente para uma miséria simbólica. Mais uma vez o educador precisa reafirmar seu compromisso na formação desses jovens, resistir em cada sala de aula como se estivesse numa trincheira, para depois tomar todo o território da escola e da Educação como uma batalha possível de ser vencida. Enfim,  sua missão como educador estará completa, pois neste momento o ciclo educacional se reiniciará e novos desafios de formação estarão postos novamente em prova, e nós enquanto educadores estaremos fortalecidos. Saber sobre esse sistema de poder do qual Foucault nos alerta, compreender seus mecanismos em sociedade é primordial para que o novo educador não seja deformado e vencido pelo sistema.





 *Artigo escrito em Junho/2014.
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Referências:
Conselho Nacional de Educação (Brasil). (1999) op. Cit. 
  
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, (organização e tradução: Roberto Machado), Rio de Janeiro: Graal 25ª ed., 1979.

CORAZZA, Sandra, O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.