quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O CADEADO DE HOUDINI


O processo de aprendizagem pode ser encarado como um habitus, passível de ser adquirido, desenvolvido e modificado ao longo da vida de uma pessoa. Segundo a perspectiva de Durkheim, podemos compreender a palavra de origem grega encerrando um fator excludente e perverso dentro do contexto escolar, pois conforme o habitus adquirido pelo individuo dentro de determinada instituição social, este fator pode condicioná-lo para sempre a classes sociais compreendidas como “inferiores” (ou simplesmente sendo formado para ser absorvido pela sociedade como mão-de-obra humana dentro do sistema capitalista). Desse modo ficam as classes operárias destinadas ao ensino profissionalizante, apossando-se deles o fantasma do “currículo oculto” gerando-lhes atitudes passivas e servis, bem como o engessamento do ato reflexivo, do livre pensar e de criatividade para solucionar problemas dentro e fora da sala de aula.

Em contraste com esse tipo de ensino existem instituições particulares onde a grade curricular engloba perspectivas mais amplas, contemplando as grandes áreas do conhecimento, com largo teor artístico e filosófico perpassando as atividades. Ensino este restrito, na maioria das vezes, às classes A e B (normalmente devido ao poder aquisitivo confortável); estas crianças e jovens adquirem e desenvolvem habitus mais refinados, alargando  e desenvolvendo outro tipo de linguagem que os fazem ter uma leitura mais dinâmica de mundo, repleta de conexões, facilitando suas experiências cotidianas, na tomada de decisões em situações complexas. Assim, essas classes naturalmente crescem com a mentalidade de que foram preparadas para estarem no topo da pirâmide capitalista. Têm mais acesso à informação e códigos que os permitem maior mobilidade nas diversas áreas sociais.

Contudo, mesmo com este suposto determinismo do habitus, existem atualmente variadas metodologias de ensino (formal e não-formal) que suprem esse abismo cavado de séculos e séculos entre os liceus profissionalizantes e as escolas elitistas. Um caminho possível é o ensino dos conteúdos através do olhar artístico. Essa alternativa permite que a interdisciplinaridade (pop star da atualidade), possa acontecer durante a construção do conhecimento dentro e fora da sala de aula.

Um forte exemplo desse tipo de pedagogia mais abrangente está em Paulo Freire, atitude amplamente discorrida em seu livros  Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Autonomia e A Importância do ato de Ler, onde Freire comenta de maneira simples e objetiva sobre como se pode atrelar a realidade social através do ensino dos conteúdos, de modo a fazer o educando perceber a beleza de estar desenvolvendo (ao mesmo tempo) o prazer do conhecimento a partir de sua própria visão e experiência de vida, como perceber-se um ator social dentro da engrenagem da sociedade capitalista em que estamos inseridos. Além disso, Freire também alfineta a postura engessada dos professores em sala de aula, abrindo os olhos dos mesmos para uma formação continuada profunda, que os faça modificar o habitus que os deixaram (inconscientemente) como multiplicadores de posturas “bancárias” na relação professor-aluno.

Entretanto, sabemos que apenas essa tomada de consciência, seguida de medidas sócio educacionais permeando o roteiro de ensino-aprendizagem dentro das escolas não basta. Não se pode funcionar como um foco isolado na sociedade, há também fatores econômicos, sociais, culturais, políticos, etc... envolvidos para a permanência desse tipo de ensino “bancário” nas escolas publicas do País.

Penso que o que nós, enquanto professores da modalidade da EJA (Ensino de Jovens e Adultos), podemos nos amparar em nossa postura profissional e ética, estando certos de nossas escolhas dentro e fora da sala de aula. Pois sabemos que existem as politicas educacionais que beneficiam de maneira justa apenas uma parcela da sociedade, e sabemos também que “justiça” e sentido de igualdade dentro desse modelo econômico capitalista ao qual estamos mergulhados, é algo que não se encaixa. O que há são pequenas barricadas possíveis de serem erguidas no meio dessa guerra branca.

Acredito que o professor da EJA quanto mais estiver munido de metodologias outras, conhecimento sobre as leis que regem essa modalidade de ensino, bem como conhecimentos de diversas áreas, facilitará a mobilidade deste profissional em saber se colocar dentro dos ambientes escolares “formais”, pois por incrível que pareça, são nos próprios locais de ensino regular que mais existem resistências e/ou incompreensão da tal “interdisciplinaridade”. O modelo cartesiano está profundamente enraizado em diversos pontos da sociedade que torna quase um truque a la  Houdini (do que algo real), que professores dialoguem entre si para abertura de trabalho inter e extra curriculares nas escolas, para que o corpo docente trabalhe em conjunto visando contemplar essa tal “interdisciplinaridade”...

Por fim, discorro mais sobre o fator benéfico que o ensino das Artes (Teatro, Música, Dança, Artes Visuais) pode proporcionar ao individuo (se realmente) os professores se apossarem dos conteúdos, assumindo a ludicidade de métodos de ensino menos autômatos. Quem conhece a(s) realidade(s) em sala de aula do ensino público no Brasil, sabe da guerra fria e consciente que os professores de Arte travam todos os dias com o conselho escolar das instituições onde lecionam, para o melhor desempenho de seu conteúdo programático da disciplina. Não perderei tempo discorrendo sobre essa guerrinha... Reflito sim, sobre como o professor de Arte pode se fortalecer e ultrapassar esse abismo.

Penso que a sensibilização da criança/jovem pode ser trabalhada em sala de aula através das disciplinas artísticas, a partir do momento em que esses conteúdos se tornam algo com sentido para os educandos. Isso ocorre quando é construído um elo emocional entre o que se compreende dos conteúdos. E nada mais divertido do que apreender conhecimento através da ludicidade, que o próprio material artístico pode oferecer, caso o professor lance mão de metodologias que considerem o repasse desse conteúdo.

Sabe-se que as Artes contemplam refinados mapas cognitivos existentes no universo individual, onde a linguagem reinante é a não-verbal e/ou simplesmente sensorial, daí acontece a mágica de Houdini: a (re)organização do conhecimento interior e exterior ao indivíduo conforme inúmeras possibilidades de escolha. O educando aprende a abrir o cadeado que o encerra na jaula. Começa a tecer conexões entre o que aprende na escola com o que vive de fato no seu cotidiano. E a atividade de compreender os conteúdos escolares torna-se para ele algo prazeroso, com sentido mais profundo, daí conclui-se que o habitus, é passível de ser adquirido, desenvolvido e modificado ao longo da vida de uma pessoa, basta encontrar as chaves certas para que a “mágica” aconteça, pois conforme comenta Débora Bolsanello (2008) acerca de possíveis conflitos que podem ocorrer com a tomada de consciência dos alunos que aderem às práticas de Educação Somática diante das exigências e imediatismos cegos da sociedade atual: “Feldenkrais costumava dizer que quando só conhecemos uma maneira de fazer algo, estamos presos a um padrão. Mas, se conhecemos duas maneiras de fazer algo, temos escolha. E se conhecemos três maneiras de fazer algo? Temos liberdade”.


Escrito em: 01 e 02 de Outubro de 2014

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Referências:

ALMEIDA, Cristiane Maria Galdino de. O multiculturalismo nas políticas públicas para a cultura, artes e música: a educação musical intercultural, in: XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM), Brasília – 2006, p. 99 – 103.

BOLSANELLO, Débora, Corpo Livre e Corpo Possuído. 2008. Disponível em: <www.movimentoes.com>. Acessado em: 21 dez. 2012.

Conselho Nacional de Educação (Brasil). (1999) op. Cit. 
CORAZZA, Sandra, O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: 17ª ed. Terra e Paz, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 – (coleção Leitura)

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler São Paulo: Autores associados: Cortez, 1989 – (coleção Polêmicas do Nosso Tempo; 4).

HUMMES, Júlia Maria. Por que é importante o ensino de música? Considerações sobre as funções da música na sociedade e na escola. Revista da ABEM, Setembro/2004 Nº 11.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago 2002 Nº 20.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias de currículo.3° Edição. Editora Autêntica. 2010.

TORRES, Renato. Reflexões sobre o ensino da arte na contemporaneidade e suas relações com as teorias de currículo. Disponível em: <www.pucpr.br/eventos/educere/educere2006/.../docs/CI-268-TC.pdf>. Acessado em 02 out. 2014.