O processo de
aprendizagem pode ser encarado como um habitus,
passível de ser adquirido, desenvolvido e modificado ao longo da vida de uma
pessoa. Segundo a perspectiva de Durkheim, podemos
compreender a palavra de origem grega encerrando um fator excludente e perverso
dentro do contexto escolar, pois conforme o habitus
adquirido pelo individuo dentro de determinada instituição social, este
fator pode condicioná-lo para sempre a classes sociais compreendidas como “inferiores”
(ou simplesmente sendo formado para ser absorvido pela sociedade como
mão-de-obra humana dentro do sistema capitalista). Desse modo ficam as classes
operárias destinadas ao ensino profissionalizante, apossando-se deles o fantasma
do “currículo oculto” gerando-lhes atitudes passivas e servis, bem
como o engessamento do ato reflexivo, do livre pensar e de criatividade para
solucionar problemas dentro e fora da sala de aula.
Em contraste com esse tipo
de ensino existem instituições particulares onde a grade curricular engloba
perspectivas mais amplas, contemplando as grandes áreas do conhecimento, com
largo teor artístico e filosófico perpassando as atividades. Ensino este restrito,
na maioria das vezes, às classes A e B (normalmente devido ao poder aquisitivo
confortável); estas crianças e jovens adquirem e desenvolvem habitus mais refinados, alargando e desenvolvendo outro tipo de linguagem que os
fazem ter uma leitura mais dinâmica de mundo, repleta de conexões, facilitando suas
experiências cotidianas, na tomada de decisões em situações complexas. Assim,
essas classes naturalmente crescem com a mentalidade de que foram preparadas
para estarem no topo da pirâmide capitalista. Têm mais acesso à informação e códigos
que os permitem maior mobilidade nas diversas áreas sociais.
Contudo, mesmo com este
suposto determinismo do habitus,
existem atualmente variadas metodologias de ensino (formal e não-formal) que
suprem esse abismo cavado de séculos e séculos entre os liceus profissionalizantes
e as escolas elitistas. Um caminho possível é o ensino dos conteúdos através do
olhar artístico. Essa alternativa permite que a interdisciplinaridade (pop star da atualidade), possa acontecer
durante a construção do conhecimento dentro e fora da sala de aula.
Um forte exemplo desse
tipo de pedagogia mais abrangente está em Paulo Freire, atitude amplamente
discorrida em seu livros Pedagogia do Oprimido, Pedagogia
da Autonomia e A Importância do ato
de Ler, onde Freire comenta
de maneira simples e objetiva sobre como se pode atrelar a realidade social através
do ensino dos conteúdos, de modo a fazer o educando perceber a beleza de estar
desenvolvendo (ao mesmo tempo) o prazer do conhecimento a partir de sua própria
visão e experiência de vida, como perceber-se um ator social dentro da engrenagem
da sociedade capitalista em que estamos inseridos. Além disso, Freire também
alfineta a postura engessada dos professores em sala de aula, abrindo os olhos
dos mesmos para uma formação continuada profunda, que os faça modificar o habitus que os deixaram (inconscientemente)
como multiplicadores de posturas “bancárias” na relação professor-aluno.
Entretanto, sabemos que apenas
essa tomada de consciência, seguida de medidas sócio educacionais permeando o
roteiro de ensino-aprendizagem dentro das escolas não basta. Não se pode
funcionar como um foco isolado na sociedade, há também fatores econômicos,
sociais, culturais, políticos, etc... envolvidos para a permanência desse tipo de ensino “bancário”
nas escolas publicas do País.
Penso que o que nós, enquanto professores da
modalidade da EJA (Ensino de Jovens e Adultos), podemos nos amparar em
nossa postura profissional e ética, estando certos de nossas escolhas dentro e
fora da sala de aula. Pois sabemos que existem as politicas educacionais que
beneficiam de maneira justa apenas uma parcela da sociedade, e sabemos também que
“justiça” e sentido de igualdade dentro desse modelo econômico capitalista ao
qual estamos mergulhados, é algo que não se encaixa. O que há são pequenas
barricadas possíveis de serem erguidas no meio dessa guerra branca.
Acredito que o professor
da EJA quanto mais estiver munido de metodologias outras, conhecimento sobre as
leis que regem essa modalidade de ensino, bem como conhecimentos de diversas áreas, facilitará a mobilidade deste profissional em saber se colocar dentro
dos ambientes escolares “formais”, pois por incrível que pareça, são nos próprios locais
de ensino regular que mais existem resistências e/ou incompreensão da tal “interdisciplinaridade”.
O modelo cartesiano está profundamente enraizado em diversos pontos da
sociedade que torna quase um truque a la Houdini (do que algo real), que professores dialoguem
entre si para abertura de trabalho inter e extra curriculares nas escolas, para que o corpo docente trabalhe em conjunto visando contemplar essa tal “interdisciplinaridade”...
Por fim, discorro
mais sobre o fator benéfico que o ensino das Artes (Teatro, Música, Dança,
Artes Visuais) pode proporcionar ao individuo (se realmente) os professores se
apossarem dos conteúdos, assumindo a ludicidade de métodos de ensino menos
autômatos. Quem conhece a(s) realidade(s) em sala de aula do ensino público no
Brasil, sabe da guerra fria e consciente que os professores de Arte travam
todos os dias com o conselho escolar das instituições onde lecionam, para o
melhor desempenho de seu conteúdo programático da disciplina. Não perderei
tempo discorrendo sobre essa guerrinha...
Reflito sim, sobre como o professor de Arte pode se fortalecer e ultrapassar
esse abismo.
Penso que a sensibilização
da criança/jovem pode ser trabalhada em sala de aula através das disciplinas artísticas,
a partir do momento em que esses conteúdos se tornam algo com sentido para os educandos. Isso
ocorre quando é construído um elo emocional entre o que se compreende dos
conteúdos. E nada mais divertido do que apreender conhecimento através da
ludicidade, que o próprio material artístico pode oferecer, caso o professor
lance mão de metodologias que considerem o repasse desse conteúdo.
Sabe-se que as Artes
contemplam refinados mapas cognitivos existentes no universo individual, onde a
linguagem reinante é a não-verbal e/ou simplesmente sensorial, daí acontece a mágica de Houdini: a (re)organização do conhecimento interior e
exterior ao indivíduo conforme inúmeras possibilidades de escolha. O educando
aprende a abrir o cadeado que o encerra na jaula. Começa a tecer conexões entre
o que aprende na escola com o que vive de fato no seu cotidiano. E a atividade
de compreender os conteúdos escolares torna-se para ele algo prazeroso, com
sentido mais profundo, daí conclui-se que o habitus, é passível de ser adquirido,
desenvolvido e modificado ao longo da vida de uma pessoa, basta encontrar as
chaves certas para que a “mágica” aconteça, pois conforme comenta Débora
Bolsanello (2008) acerca de possíveis conflitos que podem ocorrer com a tomada
de consciência dos alunos que aderem às práticas de Educação Somática diante
das exigências e imediatismos cegos da sociedade atual: “Feldenkrais
costumava dizer que quando só conhecemos uma maneira de fazer algo, estamos
presos a um padrão. Mas, se
conhecemos duas maneiras de fazer algo, temos escolha.
E se conhecemos três maneiras de fazer algo? Temos liberdade”.
Escrito
em: 01 e 02 de Outubro de 2014
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Acessado
em 02 out. 2014.